Valsa com Bashir

AUTOR E PROTAGONISTA
Folman, em sua versão em desenho: registros tão terríveis que a memória os rejeita

No extraordinário Valsa com Bashir, um documentário em animação, o cineasta israelense Ari Folman tenta entender por que apagou suas lembranças como combatente na Guerra do Líbano

Isabela Boscov



Há alguns anos, o cineasta israelense Ari Folman se deu conta de que não tinha nenhuma lembrança de sua participação na Guerra do Líbano, em 1982, aos 19 anos. Exceto por uma imagem na qual ele emergia de noite do mar, junto com outros dois soldados, e dava com Beirute iluminada por explosões, nada restara. Mais intrigante ainda é que Folman nunca sequer tentara lembrar alguma coisa; simplesmente se esquecera de que sua vida continha esse capítulo. Com a curiosidade atiçada por um amigo, que lhe narrou um sonho recorrente no qual 26 cães o perseguiam – o número exato de cães que ele matara em suas missões, para evitar que alertassem o inimigo da presença de tropas –, o cineasta decidiu revolver seu subconsciente e o dos companheiros de combate para reconstituir seu passado. O resultado dessa jornada, Valsa com Bashir (Waltz with Bashir, Israel, 2008), que estreia nesta sexta-feira no país, é um filme que existe numa categoria só sua: um documentário autobiográfico feito em desenho animado, no qual história, experiência pessoal e a reflexão sobre o significado da memória – ou da sua obliteração – se entrecruzam de forma devastadora.

De início, pode parecer peculiar que Folman tenha escolhido a animação para narrar a sua busca. Mas não demora para que os motivos dessa escolha comecem a se aclarar. De cada depoimento de seus colegas de batalha, passa-se para uma recriação dos episódios que eles rememoram – a qual, feita com atores, exigiria orçamento de superprodução. Mais importante, porém, é que logo se vê quanto as lembranças de cada indivíduo são escorregadias: os relatos são conflitantes, têm pontos cegos ou hiatos inexplicáveis, e não parecem conter um nexo cronológico. Cada veterano que Folman procura oferece a ele uma história própria e fluida, na qual detalhes são esfumaçados ou ressaltados conforme sua relevância para cada indivíduo. Usar imagens reais daria aos testemunhos a dimensão de um documento real – mas o uso da animação preserva o sentido de que todas as memórias são traiçoeiras.

No mosaico que Folman vai montando, nenhuma lacuna é mais conspícua do que a dele mesmo. Folman não se lembra das noites que passou sobre um tanque, atirando em tudo e qualquer coisa; do dia em que ele e outros soldados liquidaram uma família num carro, acreditando tratar-se de elementos hostis; ou da ocasião em que alvejou um menino que ia disparar um projétil. Folman não se lembra, particularmente, de onde estava e do que fez durante o massacre de Sabra e Chatila. Nesse episódio crucial da Guerra do Líbano, falangistas cristãos mataram estimados 3 000 refugiados palestinos em retaliação ao assassinato do presidente eleito Bashir Gemayel; as forças israelenses não participaram do massacre, mas o propiciaram, segundo as conclusões de uma comissão formada pelo próprio governo de Israel. Esse é o intervalo de memória que mais incomoda o cineasta, e é dele que ele se ocupa sem descanso – até entender a razão do vazio. Filho de sobreviventes do campo de extermínio de Auschwitz, como tantos outros israelenses de sua geração, Folman cresceu sob o peso da palavra "massacre" e de sua dimensão relativa ao holocausto. Imaginar-se ele próprio agente, ainda que involuntário, de um ato genocida é tão insuportável que a memória rejeita o registro. No ponto em que Folman finalmente consegue se situar naqueles dois dias de mortandade em Sabra e Chatila, a animação é trocada por imagens reais, e horrendas. É um momento de coragem ímpar: com ele, Valsa com Bashir estabelece que afinal existe sim uma verdade objetiva, e que se atravessou uma linha no conflito entre Israel e seus vizinhos – o limite em que soldados retornam não apenas física, mas também espiritualmente mutilados, e em que um povo colabora para produzir cenas como aquelas de que, décadas antes, fora ele mesmo vítima.





0 comentários:

Postar um comentário

 
© 2009 | . | Por Templates para Você